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Autor: Ascom Adufg-Sindicato
Publicado em 23/10/2025 - Artigo de Opinião
Menos Estado, mais metanol: a 'marvada' Reforma Administrativa
Eu bebi demais e fiquei mamada
Eu cai no chão e fiquei deitada
Ai eu fui prá casa de braço dado
Ai de braço dado, com dois sordado
(Inezita Barroso, Marvada Pinga)
Descobriram algo que aproxima as periferias urbanas, os grotões rurais e os abastados do Leblon (RJ), de Higienópolis (SP) e de Meireles (CE). Esqueçam, momentaneamente, os vínculos de exploração do trabalho. Mirem em algo mais prosaico. É o gosto, traduzido por diferentes rituais, por aquela água que passarinho não bebe, pela branquinha ou mesmo pelo “mé” eternizado por Mussum. Em síntese. Trata-se do consumo, outrora criminalizado, da aguardente, bebida destilada que frequenta os ambientes pervertidos como escritórios de empreiteiros, gabinetes de políticos e também bares de equina jocosamente adjetivados de copos sujos. Uma dose para preencher um copo americano com pinga ou um copo de cristal double com whisk. O trabalhador, o poeta, o empreiteiro e o “faria limer” unidos, aparentemente, em um só país. Um poeta Charles Baudelaire diria que não. Primeira dose. Uma pausa para pensar na vida.
Mas há algo mais comum e mais importante, responsável pela integração de um país de 8,5 milhões Km2 e com uma diversidade ecológica impar no Planeta, que merece atenção. Um país que insiste em guardar, na paisagem urbana e rural, os traços da escravidão. Em cada canto desse país estamos, de algum modo, amparados pelas redes protetivas do Estado Social. Essas redes, para simplificar, foram construídas ao longo do século XX. Com a Constituição de 1988, seguindo os princípios da universalidade e gratuidade, elevamos a saúde e a educação, além de outros serviços, ao campo dos direitos sociais. Isso significou que o Estado foi demandado a ofertar os mais variados serviços públicos. Dos serviços mais simples, como a emissão de uma CNH, até os mais complexos, como um transplante de córneas.
O desafio da universalização foi e, ainda é, gigantesco. Demandou a construção de estrutura física (escolas, universidade, hospitais, delegacias, unidades básicas de saúde etc.) em cada um dos municípios brasileiros. Para tanto, o Estado precisou de funcionários públicos (enfermeiras, professoras, assistentes sociais, psicólogas, policiais etc.). Sim. O Estado não existe como algo abstrato. Existe a partir da realização de suas inúmeras funções. Se materializa, cotidianamente, quando 37 milhões de estudantes, todos os dias, atravessam os portões das escolas públicas (Inep, 2024). Se materializa, também, quando 2.064.834 alunos de cursos de graduação buscam formação profissional nas instituições públicas de ensino superior (Inep, 2024). Se materializa, igualmente, na produção ambulatorial e hospitalar do SUS (Sistema Único de Saúde) que atingiu, entre janeiro e agosto de 2025, 3,3 bilhões e 9,4 milhões, respectivamente (Data-SUS-2025). Se faz presente, todos os dias e noites, a partir das ações de proteção da saúde da população pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A ANVISA, com o quadro de apenas 1.461 servidores (Brasil, 2025), desenvolve um trabalho fundamental em portos, aeroportos, fronteiras e, por assim, no monitoramento da produção e comercialização de alimentos, fármacos, agrotóxicos, cosméticos e, não podemos nos esquecer, bebidas.
Sim. Pense. No dia de hoje, há mais pessoas frequentando as escolas públicas que a soma de todos os que frequentam estádios de futebol, templos religiosos e shoppings centers. Essas pessoas não foram confortadas por pastores ou profetas. Encontraram-se com professoras, profissionais da saúde e da assistência social, fiscais da vigilância sanitária, policiais militares, agentes de transito, profissionais da limpeza urbana etc. São, antes de funcionários públicos, trabalhadoras e trabalhadores que ingressaram, por mérito, no serviço público federal, estadual ou municipal. Esse é o preço que devemos pagar pela democratização dos serviços públicos. Se você reclama da falta de vagas em uma creche, então pense, é também porque os funcionários públicos são insuficientes para dar conta de tamanha tarefa. Sabem que cuida, por uma fração significativa do dia, de 6.933.646 crianças matriculadas no ensino infantil público? São, principalmente, 492 mil (Inep, 2025) professoras e professores vinculados, especialmente, às redes públicas municipais de ensino.
Não há exagero na afirmação de que a existência do cidadão brasileiro, do menos ao mais abastado, esteja entrelaçada com a burocracia, no sentido positivo, do Estado. Mas aí vem mais uma Reforma Administrativa que parte do princípio que o servidor público, especialmente do Executivo (Federal, Estadual e Municipal), é o principal problema do Estado. O Estado reproduz privilégios! A metonímia é eficiente. Confunde-se, propositalmente, os rendimentos do Legislativo e do Judiciário, com remunerações e privilégios indescritíveis, com as remunerações dos servidores do poder executivo federal, estadual e municipal. No Executivo Federal, 34,9% dos servidores recebem até 9 mil reais brutos. Outros 27,38% recebem entre 9,1 e 15 mil reais brutos. No Executivo Municipal, em 2024, a média da remuneração atingiu 3,2 mil reais e no Executivo Estadual 5,2 mil reais. Seriam, esses, de fato, os vampiros que sugam o sangue dos contribuintes?
A instauração de um ambiente de terror é pensada com método. Miram na estabilidade funcional. Propõe reduzir as faixas de remuneração entre o início e o final da carreira. Carreia mais elástica e menos atraente. Novos sistemas de avaliação. Impõe-se uma narrativa de que a qualidade dos serviços depende, exclusivamente, de um choque de gestão. O Estado é caro! O paradigma da criminalização do funcionário público é aquele adotado por Abilio Brunini, prefeito de Cuiabá (MT) e Sandro Mabel, prefeito de Goiânia (GO). Não. Nesses termos não podemos, sequer, iniciar as conversas. A mobilização é necessária! O Estado brasileiro, a despeito do que a maior fração do parlamento possa acreditar, tem sido eficiente na sua tarefa de universalizar os serviços públicos. É o Estado que sobe o Rio Negro, na imensa Amazônia, oferecendo serviços de saúde, educação e segurança pública. Não é a inciativa privada, interessada, apenas, pelo lucro, que vigia mais de 15 mil quilômetros de fronteira seca. É o Estado que oferece, por intermédio da educação pública, alguma perspectiva de mobilidade social para os mais vulneráveis. É o Estado que administra um dos mais complexos sistemas de Previdência Social do Planeta que emite, todos os meses, com apenas 18 mil servidores públicos, mais de 40 milhões de benefícios para a população mais vulnerável.
Uma segunda dose. Mais dois dedos no copo americano! O desespero tomou conta do país. Dezenas de notificações por intoxicação por metanol foram divulgadas nos balanços do Ministério da Saúde. Nas mesas refinadas da Faria Lima o pânico predomina. Johnnie Walk, Smirnoff, nada é Absolut. Tudo o que era é líquido desmanchou-se no ar. Não há ética no livre mercado. Mas Milton Friedman, naquele livro que tem uma prateleira na capa, havia ensinado que somos livres para escolher. Os jovens financistas da Faria Lima e da Vila Madalena descobriram que a mão invisível era, tão somente, uma frase solta naquele clássico livro de economia. A lenda diz que um garçom, que mora em Paraisópolis e trabalha no Noha Gastronomia, requintado estabelecimento da Faria Lima, ouviu o lamento de um fraterno amigo de Fernando Haddad, dos tempos em que o Ministro lecionava no neoliberal Insper – “Menos Marx, mais Mises”. Dizia isso enquanto elogiava a atuação da ANVISA diante da crise do metanol. Ao final da noite, o garçom, chamado de Sardinha, voltou para a periferia. Antes, no entanto, parou na esquina da Iratinga, no Discórdia Bar. Pediu dois dedos da branquinha. Aguardou. Nada aconteceu. Vida que segue.
Referencias
https://www.letras.com/inezita-barroso/67242/traduccion.html
https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMzVkNzNiN2MtYzUxZS00NjQ1LWI3ZGEtN2M3NTlkNzNmNDJhIiwidCI6ImIxY2E3YTgxLWFiZjgtNDJlNS05OGM2LWYyZjJhOTMwYmEzNiJ9
https://datasus.saude.gov.br/informacoes-de-saude-tabnet/