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Autor: Ascom Adufg-Sindicato

Publicado em 11/10/2019 - Notícias

“Os pais têm motivos para se preocupar, a internet não tem nenhuma barreira”

Uma das maiores autoridades em inteligência artificial do País, professor da UFG explica o estágio do setor e quais são seus impactos no mercado de trabalho

“Os pais têm motivos para se preocupar, a internet não tem nenhuma barreira”
Foto: Fábio Costa

A Universidade Federal de Goiás (UFG) lançará, no ano que vem, o primeiro curso de graduação em instituição pública voltado para o desenvolvimento da inteligência artificial. Serão 40 vagas, em tempo integral, para formar um profissional conectado com uma das áreas que mais crescem em todo o mundo. Um dos envolvidos nesse processo é o doutor em Engenharia da Computação Anderson Soares, professor do Instituto de Informática. Nessa entrevista ao Jornal Opção, ele fala dos avanços da inteligência artificial e como ela está presente na vida das pessoas. O professor também comenta o impacto dela nas eleições e na decisão de compra. Pai de duas meninas, uma de cinco e outra de oito anos, ele limita o uso da tecnologia pelas filhas e alerta que as soluções inteligentes estão criando pessoas extremamente mimadas.

Ítalo Wolff – Em termos bem gerais, o que é a inteligência artificial?
É um conceito muito amplo. Mas posso resumir como sistemas computacionais ou de hardware, que são ciberfísicos, capazes de realizar tarefas para que não foram explicitamente programados para realizar. O software só faz aquilo para o qual foi estritamente programado. O sistema inteligente consegue transpor isso. Talvez a facilidade maior [para compreender o conceito] seja por meio de exemplos, porque eles são muito presentes nas vidas das pessoas. Toda vez que se abre uma rede social, o conteúdo que aparece para mim é diferente do que aparece para você, ainda que o acesso tenha sido feito no mesmo momento. Esse conteúdo é uma IA que escolhe, a partir de seus hábitos e do contexto do momento que você abriu – um fato publicado em um magazine, por exemplo, mesmo que você não tenha hábito de ler sobre o assunto, mas que a IA entenda que vai lhe interessar. Outro exemplo é o uso dos aplicativos de mapas. A escolha da rota e a estimativa do tempo são feitas por algoritmos inteligentes. Eles são dinâmicos no tempo, não fazem somente aquilo para que foram programados. Se existe um contexto, uma realidade nova naquele instante, ele é capaz de se adaptar. Em resumo, são soluções tanto de softwares quanto ciberfísicos que são capazes realizar tarefas que não se limitam ao que foram explicitamente programados.

Rodrigo Hirose – Esse conceito está ligado diretamente ao conceito de machine learning, as máquinas que aprendem?
O aprendizado de máquinas, o machine learning, talvez seja o responsável por 90% da evolução que estamos vivendo. O conceito simples e direto é o aprendizado a partir de dados. Tudo que tem dados se consegue aprender alguma coisa. A IA e o aprendizado de máquinas remetem, na verdade, à década de 1960. Mas quais dados estavam disponíveis em 1960? Era como se tivéssemos aprendido a fazer o carro, mas ainda não havia combustível. De repente, há um movimento cultural, que é a digitalização das pessoas, que gera tantos dados que não se sabe o que fazer com ele. Saímos de um cenário de escassez para um cenário extremamente abundante de dados e informações. Isso deu uma oxigenação às soluções inteligentes como nunca houve antes.

Rodrigo Hirose – O filme O Jogo da Imitação dramatiza a vida do matemático Alan Turing, que criou uma máquina capaz de descobrir códigos usados pelos nazistas, sendo importante ferramenta de guerra. A Máquina de Turing já era uma inteligência artificial primitiva?
O Turing é praticamente o pai da computação moderna. O conceito de inteligência artificial, inclusive, surge com ele, com a vontade do ser humano conversar com a máquina. Só que, naquela época, era apenas um desejo, não existia tecnologia nem condições para viabilizá-la. Ao longo do tempo, foram feitas soluções intermediárias, a tecnologia foi escalando, até chegar ao momento que vivemos hoje, em que conseguimos literalmente conversar com a máquina, por meio de uma interface de voz. Existe [por parte da máquina] a compreensão do que o usuários está falando e ela consegue sintetizar uma voz. [No Deep Learning Brasil, laboratório da UFG] Já conseguimos, inclusive, sintetizar a voz do presidente Jair Bolsonaro e do ex-presidente Lula. Basta colocar o texto e a máquina entende o que é uma entonação, qual o estilo de voz da pessoa. Quando se usa a IA, geralmente é para automatizar tarefas. São poucas tarefas que conseguimos realmente superar o desempenho de um humano. Essa [da imitação da voz] é uma delas. Precisamos de poucos minutos da voz de uma pessoa para conseguir cloná-la.

Ítalo Wolff – Como esses dados se convertem em uma habilidade nova para a máquina?
Nesse exemplo, foi usado um discurso do Bolsonaro e a IA foi treinada para entender o que é a voz do presidente, como ele se comporta com as sílabas, com as entonações. Esse tipo de aplicação só é possível pela disponibilidade dos dados digitais. Se não estivesse na rede, não seria objeto de estudo e muito menos uma implementação dessas existiria.

Rodrigo Hirose – O sr. deu alguns exemplos, como os aplicativos de navegação. Mas o que a inteligência artificial já é capaz de fazer e de que será capaz futuramente?
Podemos dividir tudo o que é possível fazer em duas caixinhas. A primeira, a da automação. Tudo que uma pessoa faz é passível automação, principalmente se for [algo] repetitivo, mas, mesmo se for intelectual – essa é a grande novidade dessa transformação que estamos vivendo. Mesmo um trabalho que envolve certa cognição, se for repetitivo, é passível de automação pela IA. A segunda caixinha é o que se chama inteligência primitiva. A tomada de decisão por uma pessoa é baseada na análise de um fato. A inteligência primitiva prevê que determinada coisa vai acontecer. Isso muda a tomada de decisão. Por exemplo, se você souber que no próximo mês a venda de determinado produto vai cair 5%, essa é uma informação de extremo valor. A IA pode dizer, a uma empresa, quais os clientes que tendem a cancelar a assinatura de um serviço em alguns meses. Assim, a empresa passa a fazer uma ação preventiva, antes que a pessoa termine de compilar a decisão de cancelamento. A insatisfação é construída e a IA vai pegar esses lastros, a partir dos dados que você registra com a usabilidade e interação com o produto.

Ítalo Wolff – Se o cliente está pesquisando o concorrente é sinal que pode trocar o serviço…
Sim, mas não só isso, também as reclamações, dados da usabilidade. Por exemplo, se o leitor não abre o jornal há 20 dias. Tudo isso vai sendo lastreado e cruzado com o perfil de quem cancelou a assinatura ou manteve a assinatura nos últimos anos. Assim, a IA vai aprendendo. Algumas coisas são óbvias, como no caso do assinante que não abre o jornal há dois meses. Mas a questão é pegar [os dados] não óbvios e dar escala a essa coleta.

Rodrigo Hirose – Nesse caso, a empresa que edita o jornal pode usar vacinas contra o cancelamento da assinatura.
Exatamente.

Rodrigo Hirose – Com a tecnologia disponível hoje, o que a inteligência artificial não pode fazer?
Trabalhos que requerem o processamento de um alto nível de abstração.

Rodrigo Hirose – Mas hoje já temos livros escritos por máquinas, quadros pintados por máquinas.
Sim, essas atividades já têm certo nível de abstração. Mas, vejamos o exemplo do campo jurídico. Há uma abstração e uma relativização de fatos que é muito difícil para a máquina fazer, porque é um conhecimento abstrato intangível, que não está apenas na peça do texto. Também é quase impossível para a IA aprender em situações em que quase não há dados disponíveis. No caso da assinatura do jornal, é preciso ter muitos exemplos de leitores que cancelaram e dos que não cancelaram. O perfil de dados ao longo do tempo sobre eles. Mas se a empresa der início a um programa de congelamento de assinaturas, não será possível a IA prever quem vai congelá-la, pois ainda não existem dados históricos sobre esse tipo de comportamento. Em resumo, são essas duas situações que ainda não podem ser aprendidas pela IA: quando o conhecimento envolvido é muito abstrato e intangível e que requer alto nível de relativização e situação em que se tem de generalizar, por ser ainda novidade em termos de conhecimento. São situações que possivelmente nenhuma IA será capaz de resolver.

Augusto Diniz – Tomemos dois exemplos: esse do cancelamento das assinaturas e o do trabalho de mapeamento de pastagens, em que a quantidade de dados colhidos pela máquina é muito maior que a capacidade humana. O que teríamos de diferença de tempo de trabalho com o uso da inteligência artificial e sem o uso dela?
São escalas incomparáveis. Em um estudo recente, um cardiologista bem treinado levou 15 minutos para analisar a ressonância de coração. Já existem sistemas inteligentes que conseguem a mesma efetividade de análise em menos de um segundo. Isso porque é uma tarefa muito complexa. Em tarefas menos complexas, essa proporção aumenta muito e é até difícil fazer uma comparação. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais classificou a jurisprudência de milhares de processos em menos de um segundo. Essas tarefas que se repetem muito são certamente as candidatas a terem um processo de refatoração do exercício do trabalho, porque uma máquina vai conseguir reproduzi-las com uma agilidade muito maior que qualquer um de nós.

Ítalo Wolff – Qual a diferença entre a inteligência artificial especialista e a geral?
A geral ainda é uma ficção. Estamos muito longe desses conceitos mais apocalípticos de uma IA que toma consciência e consegue extrapolar de fato as tarefas. A revolução que vivemos é sobre a IA especialista. Se houver dados a respeito de alguma tarefa, mesmo que envolva certa intelectualidade, mas que seja repetitiva, essa IA conseguirá aprendê-la. O mais intrigante é em relação aos veículos autônomos. Existe uma cognição avançada. Mas é uma tarefa repetitiva, tanto que muita gente não gosta [de dirigir]. É basicamente intepretação das regras de trânsito, sinais visuais, muito raramente sonoros, tomada de decisão de aceleração, frenagem e direção. Isso é a IA específica. A IA generalista seria o carro decidir que não vai levar o passageiro.

Rodrigo Hirose – No filme 2001, uma Odisseia no Espaço, o computador HAL 9000 se rebela e domina a tripulação de uma espaçonave. Essa realidade, portanto, em um horizonte curto, vai ficar na ficção?
Vai. O que existe hoje é uma empolgação em algumas comunidades em relação a isso. A Microsoft anunciou um investimento de 1 bilhão de dólares só para IA generalista, que não tem aplicação comercial nenhuma. Isso ainda é ficção.

Rodrigo Hirose – E como é o impacto de tudo isso no mercado de trabalho?
É difícil medir o que é impacto da IA e o que é impacto da digitalização, pois elas se confundem. São praticamente irmãs no processo. Mas já há um impacto muito grande nos call centers, a quantidade de empregos visivelmente reduziu e tende a desaparecer, pois há um grande nível de automação. Sempre haverá um atendente para casos excepcionais, mas locais que empregavam mil pessoas vão empregar 20. O veículo autônomo impactará não apenas [no emprego] dos motoristas, mas em toda matriz econômica. A lógica de comprar carro vai mudar, assim como a lógica de mobilidade. Existe toda uma cadeia ao redor disso, desde o vendedor do carro ao que dá manutenção.

Augusto Diniz – O próprio transporte por aplicativo, cuja ideia de alguém usar o carro que não é dele é relativamente nova, já entra nessa lógica. A tendência é que esse emprego acabe.
Vai acabar. O maior investimento da Uber atualmente é no desenvolvimento do veículo autônomo. No próprio IPO [lançamento de ações na bolsa] a empresa deixou claro que só terá lucro se conseguir desenvolver o carro autônomo.

Rodrigo Hirose – O desenvolvimento do carro autônomo desperta algumas questões éticas. Por exemplo: como a máquina vai decidir entre atropelar uma criança ou jogar o carro em direção a outro que vem na mão contrária, se ele estará programado para evitar colisões?
Há um campo de pesquisa sobre como programar questões éticas para uma IA. Essa situação citada é relativamente fácil, o problema é quando evitar o atropelamento de uma criança envolve jogar o carro em cima de outra pessoa. Essa é uma decisão muito mais complexa de ser tomada. São campos que estão abertos, debates estão ocorrendo para que soluções sejam pensadas. O debate será similar ao que ocorre na medicina. Quando um médico erra, ninguém fica sabendo, ou várias pessoas erram no trânsito e ninguém fica sabendo ou banalizamos o fato.

Rodrigo Hirose – No caso da máquina, será muito mais fácil fazer a perícia de um acidente de trânsito.
Esse é o ponto. Uma das grandes discussões legais é determinar a responsabilidade de cada um. Hoje é exaurida nas relações humanas e pela dificuldade de auditoria, seja na questão da saúde ou das máquinas. Mas agora estamos diante de decisões automatizadas e tudo é periciável. Esse lastro sempre vai existir e será possível fazer investigações efetivas, se quisermos.

Augusto Diniz – Há uma tendência atual de negação do conhecimento e a primeira área atingida é a de Humanas. Mas há também a discussão de que, quando a maior parte das atividades estiver automatiza, esse conhecimento ligado à área de Humanas vai retomar a importância.
Exatamente, pois, querendo ou não, é nas ciências humanas que se tem o cenário do relativismo e o conhecimento intangível e abstrato. Isso é inacessível para a máquina. Em minha opinião, a psicologia é uma profissão que está absolutamente protegida. Por mais que se construam chatbots com interface de voz, a empatia humana é difícil de pensar como funciona. Só se consegue colocar na máquina aquilo que se entendem minimamente. Há uma série de campos do conhecimento que não terá grande impacto no momento e as ciências humanas estão nesse contexto, por incrível que pareça.

Augusto Diniz – Já existem estudos que mostrem o impacto de nossa dependência cada vez maior da tecnologia? A memória, por exemplo, está sendo afetada?
Os acessórios que temos hoje nos deixam mimados, a tecnologia tem nos deixado mimados. Existe a possibilidade real de chegarmos ao cenário apresentado no filme Wall E, em que ninguém faz nada. Naquele cenário hipotético o ser humano perdeu a capacidade de andar com as próprias pernas. O ser humano está caminhando para essa realidade. As pessoas fazem caminhada por necessidade de saúde. Explicar isso para nossos antepassados seria complicado, porque eles caminhavam por hobby. A tecnologia foi nos mimando ao longo das gerações, principalmente após a última revolução industrial, que foi a revolução das máquinas e da informática. O conceito das relações de consumo é oferecer para o cliente o que ele quer e quando ele quer, e ser muito assertivo em relação a isso. E só por meio da IA se consegue isso. Isso está muito penetrante no varejo. O lojista sabe se vai acabar meu iogurte na semana que vem e toma ações quanto a isso para que eu não compre no concorrente. As soluções para isso são efetivas e eficazes em aumentar a relação de consumo.

Ítalo Wolff – Como fica a discussão ética sobre o uso dos dados pessoais para um nível tão profundo de marketing?
Até onde estamos dispostos a fornecer esses dados? Em um primeiro momento, o benefício é óbvio para a economia e para os consumidores, mas existe um preço a ser pago, que é a privacidade. Quando instalamos software no smartphones ou assinamos contratos com varejistas, não lemos as informações sobre o que estamos cedendo. Caso lesse, a maioria não assinaria.

Augusto Diniz – A privacidade deixará de existir em algum momento ou chegará a um ponto em que a sociedade vai repensar sobre a questão?
Teremos de pensar muito sobre isso. Não existe uma decisão pronta, ninguém tem uma resposta pronta. Existem dois caminhos muito claros no mundo. A Europa caminhou para a preservação da privacidade e restrição de uso de dados. A China seguiu a linha de que os dados não são seus, tanto que o país é o melhor do mundo para se desenvolver IA.

Augusto Diniz – A China já usa o reconhecimento facial nas ruas.
Não só facial, mas para controle social. Lá partiu-se da premissa que os dados são do governo.

Rodrigo Hirose – Ano que vem, começa a vigorar a Lei de Proteção de Dados. Qual será o impacto dela no desenvolvimento da inteligência artificial?
A LGPD é extremamente restritiva. É claro que temos de encontrar um meio termo para oferecer privacidade às pessoas que desejam, mas a maioria está disposta a ceder alguma coisa para ter produtos melhores, em condições melhores e uma economia mais pujante. Gosto muito do modelo da Dinamarca, em que o default (parâmetro) é que, em caso de manifestação, você tem total direito de proteger sua privacidade. A LGPD foi em um caminho contrário: de ser restrita por padrão. Isso terá um impacto na nossa economia que quem elaborou não pensou sobre isso ou não tem conhecimento sobre o assunto. Em uma analogia, vamos proibir que todos andem de moto para diminuir os gastos com hospitais [por acidentes]? O Brasil precisa de uma lei dessas, mas ela veio com uma dose carregada de desconhecimento do que isso pode ter na economia.

Augusto Diniz – A resposta para isso não está no fato de que ainda somos muito adolescentes no uso da tecnologia?
Com certeza. Na semana passada, um senador do Rio Grande do Norte protocolou um projeto de lei para regulamentar o uso de inteligência artificial. No Brasil, somos especialistas nisso. Tudo que surge logo tem um monte de regulação e ninguém para fazer. A proposta diz que nenhuma IA pode funcionar sem supervisão humana. Isso praticamente inviabiliza qualquer coisa de IA, é quase uma proibição. As evoluções tecnológicas sempre geram incômodos para algum nicho. Imagine quando surgiram os primeiros computadores, que acabaram com profissões como a de datilógrafo. Alguém hoje faz curso de datilografia? Alguém poderia pensar naquela época em se proibir os computadores, pois há que os use para cometer crimes.

Rodrigo Hirose – Por causa desse medo, o Brasil corre o risco de repetir a Lei da Informática (que proibia importações de componentes nas décadas de 1980 e 1990) e, assim, ficarmos mais uma vez para trás no desenvolvimento tecnológico?
Esse é um excelente exemplo. Estaremos sempre atrasados, impressionante como não aprendemos as lições da nossa própria história. A gente proibiu as importações com a Lei da Informática. Sempre que há algum avanço tecnológico há uma tendência de regulamentar, proteger, sem pesar benefícios e malefícios. Temos uma visão muito míope das evoluções tecnológicas. A prioridade deveria ser políticas de massificação e reeducação de algumas profissões. As últimas transformações industriais eram lentas, o mundo era lento, o velocímetro era outro. Hoje, o mundo está exponencialmente conectado. Um produto bom chega muito rápido a qualquer consumidor em qualquer parte do mundo. Temos muito menos tempo para nos adaptar. O que vamos fazer com esse tanto de motorista? Vamos proibir o carro autônomo? Fale isso para o consumidor. Qualquer pesquisa vai mostrar que a maioria prefere pagar um pouco a mais para se livrar do estresse do trânsito. Do ponto de políticas públicas, e é para isso que serve o governo, é preciso ser ágil para mitigar os efeitos negativos e aproveitar os benefícios.

Ítalo Wolff – Esse tipo de debate não é novo. Desde a primeira revolução industrial, o número de pessoas para realizar determinada atividade é cada vez menor. Onde esses debates têm ocorrido atualmente e eles já apontam para alguma solução?
No Brasil, ainda não vejo uma discussão séria sobre o assunto, que deixe de lado paixões políticas e seja mais pragmática. É preciso ter um pouco mais de visão de sociedade, um mínimo de organização. Não podemos ser retrógrados. Alguns empregos desaparecerão, mas surgirão outros. A dificuldade é que eles exigirão muita qualificação.

Rodrigo Hirose – Em um país desigual como o Brasil, há o risco de surgir uma legião de novos excluídos?
Sem dúvida, se hoje o muro social é de 2 metros, ele será de 20 metros. A IA hoje é de nível de mestrado e doutorado e há um movimento global de criação de bacharelados – inclusive a UFG será a primeira universidade pública a criar um curso no País. Estamos falando de uma massa que hoje tem empregos repetitivos, que podem ser automatizados, e jogá-la para dentro da universidade. Isso não é brincadeira. Não estamos preparados para isso e realmente esse fosso social tende a aumentar.

Rodrigo Hirose – Toda essa escolha automatizada de produtos, músicas, livros que nos é ofertada nas redes sociais não está limitando demais nosso repertório?
O consumidor pode ficar extremamente mimado. O algoritmo escolhe o filme que você deveria assistir, as notícias que você deveria ler. Perde-se a natureza aleatória do processo que moldou as gerações passadas. Esse é um cuidado. Essas fronteiras ainda são inexploradas e que devem ser tateadas. Imagine se nossos antepassados não tivessem explorado os mares? A exploração é de nossa natureza, por isso temos de ser mais pragmáticos.

Augusto Diniz – Em algum momento as pessoas vão entender que precisam aprender o básico para lidar com a tecnologia, como ler os termos de aceitação de uso?
Hoje a pessoa simplesmente ignora esses termos. Uma parte muito grande da população não sabe nem mesmo lidar com um e-mail. Esses já são excluídos fortemente. Há uma nova sociedade emergindo, o homo sapiens online, que precisa ter mais cuidado, pois tudo dele estará disponível: fotos, voz, etc. Essa é uma nova forma de pensar e agir em que todos estão sendo reeducados, mesmo aqueles que já são um pouco online.

Rodrigo Hirose – Nas eleições de 2018, houve muita denúncia de manipulação por meio de fake news. A tendência, para as eleições de 2020, é isso ficar ainda mais forte? Precisamos aprender a lidar com isso?
Apesar de todos acharem isso um malefício, eu o considero um benefício, porque nunca se discutiu tanto a veracidade das informações como agora. Fake news sempre existiram. Só que não havia como pesquisar sobre a veracidade das informações. O que ocorre agora é que há uma amplificação da disseminação das fake news pela internet e outros meios digitais. Pelo lado positivo, estamos sendo obrigados a discutir com pessoas que nunca se interessaram sobre fatos a questão de veracidade de alguma coisa, o que é fato, o que é meia verdade. Mesmo que traga transtornos grandes, como nos últimos sete anos, no final o saldo será positivo. Quando os fake vídeos se tornarem populares, serão uma grande arma. Essa poderá ser uma das novas profissões: perito de vídeo e áudio sintetizado.

Augusto Diniz – Que tipo de influência o uso de dados tem sobre a decisão do voto?
Essa questão é absolutamente sensível. Da mesma forma que a pessoa pode ser induzida a comprar um produto que ainda não precisa, pode ser influenciada em sua opinião. O algoritmo não tem espectro ideológico nem opinião. Ele aprende tarefas.
A sociedade terá de ser reeducada nesse ambiente social, de uma forma séria como nunca fizemos, sobre veracidade de fatos e manipulação de informações, para que não esteja tão vulnerável.

Rodrigo Hirose – As crianças hoje nascem com um celular nas mãos. As escolas têm se preocupado com isso e os pais estão em pânico. Há motivos para esse desespero?
Têm. Quando éramos crianças, em uma banca de jornal, o conteúdo inapropriado ficava à parte, geralmente protegidos. A internet não tem nenhuma barreira, nem a conteúdos proibidos para menores de 18 anos nem para conteúdos muito mais graves, como grupos de ódio. A deep web é um mundo que ninguém sabe o tamanho nem quão perigoso é, porque está escondido atrás de fóruns e comunidades ocultas nas redes sociais. Não há qualquer proteção contra isso, para o bem e para o mal.

Rodrigo Hirose – O que os pais podem fazer em relação a isso?
Existe uma guerra de algoritmos inteligentes com objetivos conflitantes. Há algoritmos de bloqueio de conteúdo e algoritmos que tentam oferecer conteúdos, mesmo os inapropriados. As crianças recebem uma oferta muito grande de propaganda nas plataformas de vídeo, mais do que havia na tevê. Compreensão de conteúdo de vídeo é uma tarefa complexa para a IA, porque envolve muita informação. Há o risco, mesmo que baixo, de uma criança receber uma propaganda inapropriada em determinada plataforma.

Rodrigo Hirose – O sr. impõe limite ao uso de tecnologia para suas filhas, que ainda são crianças?
Tomei a decisão de não dar acesso a elas a sistemas inteligentes que envolvam armas e nem manipulação de informações.

Augusto Diniz – O que são esses sistemas inteligentes que envolvem armas?
Drones e veículos de combate, que dão uma inteligência cibernética a armamentos. Essa é uma grande indústria hoje da IA. A linha é tênue. Da mesma forma que se desenvolve um carro autônomo, é possível colocar uma bazuca nele.

Augusto Diniz – O Youtube decidiu, recentemente, tirar a monetização de canais infantis por meio da publicidade. Como a inteligência artificial pode classificar o que é ou não prejudicial para uma criança?
Essa área está em avanço. É onde o Google mais investe atualmente, porque é onde está perdendo mais dinheiro. Ainda é uma barreira que tem de ser superada, porque o algoritmo para entregar propaganda funciona bem, mas o algoritmo para bloquear conteúdos inapropriados em vídeo não funciona muito bem. O investimento para compreensão do que acontece na plataforma só aumentou depois que uma grande montadora de automóveis retirou o patrocínio no Youtube após ter o anúncio vinculado a um vídeo antissemita. O algoritmo da plataforma envia o anúncio a canais que têm muito acesso, sem identificar se o discurso era negativo.

Augusto Diniz – O WhatsApp anunciou a exclusão de várias contas envolvidas com disseminação de conteúdo inadequado. Como é feita essa triagem para chegar até elas?
A IA só vai conseguir analisar o que você divulga se ler a mensagem. Só é possível a privacidade sem o uso de soluções que vasculham seu conteúdo. Ou se tem privacidade ou se têm soluções em cima de seus dados. É dificil juntar as duas coisas.

Rodrigo Hirose – Em que estágio está o desenvolvimento da internet das coisas e qual sua relação com a inteligência artificial?
Internet das coisas ajuda muito na digitalização, pois são basicamente peças físicas que têm conectividade e capacidade de coleta de dados. Há três semanas, viralizou o post de uma menina feito da geladeira, após a mãe ter tirado dela o celular e o computador. A internet das coisas tem um papel importante nesse processo. O celular é um supersensor, ele e os aplicativos sabem que hoje, às 3 da tarde, estou no Park Business Connect [onde está a sede do Jornal Opção]. O celular sabe de tudo isso. O carro hoje também é um supersensor.

Rodrigo Hirose – Quando tenho uma geladeira que sabe qual produto está em falta, estou fornecendo cada vez mais dados para que as empresas saibam tudo de mim?
Sim, e elas usam essa informação para te oferecer produtos e serviços personalizados. É a era de customização em massa, que só escalável com a IA. Não existe outra tecnologia para viabilizar isso.

Rodrigo Hirose – Como será a graduação da UFG sobre inteligência artificial?
A seleção será pelo Sisu 2020, a partir da nota do Enem. São 40 vagas, remanejadas do curso de Sistema de Informação. Não era a solução ideal, porque estamos fechando vagas de um curso que tem empregabilidade, mas foi necessário porque houve redução de recursos para a UFG. Mas, na leitura de momento, entendemos que esse curso é extremamente importante, não só para Goiás, mas para todo o País. Desde que o abrimos, já recebemos contato com o pessoal da Bahia, Paraná, Pará, São Paulo, querendo saber mais do projeto. Essas soluções vão chegar e, se não fizéramos, teremos de importar. Ou o Brasil reage, ou vai, mais uma vez perder uma nova oportunidade de transformação, pois nas transformações o jogo é zerado. Nada mais natural que esse curso parta daqui. É uma coisa que surpreende muita gente, mas o fato é que o Instituto de Informática da UFG é uma das principais lideranças em inteligência artificial do País, senão a principal. A proposta é devido ao que já estamos fazendo. A UFG tem contato com as principais empresas do ramo no País. Então apenas pegando algo que está consolidado na pós-graduação e trazendo para a graduação.

Rodrigo Hirose – Por que foi preciso criar um novo curso ao invés de incluir novas disciplinas em cursos já existentes?
Dentro da grade proposta, quase não foi possível incluir tudo o que nos propusemos a ensinar em IA, não foi possível encaixar como um conjunto de disciplinas ministradas em um ano ou um ano e meio.

Rodrigo Hirose – Os mais velhos dizem que a geração que está crescendo hoje está mais burra, muito devido ao uso das novas tecnologias. Da revolução digital, sairá uma geração mais ou menos inteligente?
São inteligências diferentes. As pessoas terão novas ferramentas de trabalho e terão mais tempo, pois perdem muito tempo fazendo tarefas repetitivas. As pessoas poderão colocar a inteligência em tarefas em que realmente são insubstituíveis. A última revolução industrial tirou muita gente do campo, houve muito desemprego, mas quem hoje quer voltar para lá? Hoje produzimos mais, de forma mais acessível, trabalhando menos. Hoje, a maior parte da população brasileira vive melhor que um rei da idade média. Há pessoas com dificuldade alimentar, mas há uma oferta de proteína quase de graça. Vai haver desconfortos iniciais, mas qualidade de vida da sociedade em geral será melhor. Os ganhos servirão a todos.

Augusto Diniz – A tecnologia tem interferência no aumento de problemas emocionais?
Como leigo, acredito que existe essa relação. Nossa geração precisa esperar um horário para assistir a determinado programa de televisão. A atual geração não tem de esperar, tudo é on demand, e pode achar que na rua tudo é assim, que não precisa esperar para ser atendida. Isso pode gerar um descompasso nas relações emocionais.

Matéria publicada originalmente em: https://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/os-pais-tem-motivos-para-se-preocupar-a-internet-nao-tem-nenhuma-barreira-213985/?fbclid=IwAR0i4Ase2U3ANrTBRx33hjtOvdj7fg-vqfdqJRLr3W-GEwf-v4KnGdOUvRc